O déficit de uma legislação voltada para a população em situação de rua no Brasil é um dos grandes colaboradores para a violação dos direitos humanos neste segmento da sociedade, conforme apontado pela defensora pública federal Charlene da Silva Borges. Atualmente ela ocupa a posição de secretária-geral de Articulação Institucional da Defensoria Pública da União (DPU) e pontua que a decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) ajudou a preencher essa lacuna legal.
A resolução, tomada individualmente pelo ministro Alexandre de Moraes no final de julho e confirmada pelo plenário da Corte em agosto, determinou medidas de proteção e auxílio à população em situação de rua. Borges considera a decisão como uma poderosa força normativa, mencionando à CNN que a proibição de remoções forçadas facilitará a ação de reclamações judiciais e a identificação de ilegalidades.
De acordo com a decisão do STF, é obrigatório que o governo federal desenvolva um plano de ação e acompanhamento para a implementação da Política Nacional para a População em Situação de Rua. Este plano, que deve ser formulado em até 120 dias, precisa incluir um panorama atualizado da população em situação de rua, identificando seus perfis, origens e necessidades principais.
Entre as medidas estabelecidas, destaca-se a proibição do recolhimento forçado de bens desse segmento da população, a proibição de remoção compulsória e iniciativas de segurança para essas pessoas em abrigos, inclusive com apoio para seus animais de estimação.
Charlene Borges argumenta que, por falta de legislação específica, autoridades públicas frequentemente adotam práticas forçadas de remoção – muitas vezes chamadas de “higienizadoras” – violando os direitos humanos desses indivíduos.
Em alguns municípios, existem benefícios sociais específicos, como auxílio aluguel e rede de abrigamento. Contudo, essas medidas são desuniformes, ressalta Borges, que argumenta a necessidade de se uniformizar esse modelo de benefícios sociais, contemplando também abrigos, redes de fomento, educação e a inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho, envolvendo todas as esferas.
A Política Nacional para a População em Situação de Rua, de fato, foi instituída por um decreto em 2009, contudo, apenas cinco estados e quinze municípios aderiram a ela. Essa política busca oferecer um grupo de ações e medidas para preservar a vida e a saúde da população em situação de rua.
Um dos principais objetivos desta política é realizar a contagem oficial dessa população. Borges reitera que o estabelecimento desta contagem é uma das principais demandas históricas, visto que é por meio desses dados que se torna possível planejar ações efetivas de auxílio, acolhimento e promoção social.
De acordo com um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a população em situação de rua no Brasil é de 281.472 pessoas, número retirado de dados até 2022 do Cadastro Único. No entanto, Borges ressalta que o número é subestimado, pois apenas contabiliza os indivíduos que solicitaram benefícios sociais do estado, excluindo os mais marginalizados.
A ação movida pelos partidos PSOL e Rede e pelo Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), que levou à decisão do STF, exigiu que os governos federal, estaduais e municipais tomassem medidas sobre as condições desumanas de vida da população em situação de rua no Brasil.
Os governos estaduais e municipais agora devem tomar medidas para garantir a segurança dos pertences e das pessoas em situação de rua nos abrigos estabelecidos, oferecer apoio aos seus animais de estimação, proibir a remoção forçada de pertences, evitar a “arquitetura hostil” contra a população em situação de rua, divulgar informações detalhadas sobre a limpeza urbana de forma a evitar conflitos, e realizar mutirões de cidadania para a regularização de documentos e inclusão em políticas publicas existentes.
Em sua decisão, Alexandre de Moraes destacou o conceito de aporofobia, o preconceito contra pessoas pobres, e enfatizou que tais preconceitos muitas vezes geram atos de violência estatais. Os governos estaduais e municipais, de acordo com a decisão do STF, devem garantir o abrigo aos animais de pessoas em situação de rua, oferecendo suporte a clínicas veterinárias privadas, e disponibilizar itens básicos de higiene para a população em situação de rua.
Para Charlene Borges, a população em situação de rua é extremamente invisibilizada e negligenciada por parte da sociedade e das instituições, perpetuando uma cultura de invisibilidade e descaso. As novas determinações do STF visam combater essa cultura e buscar melhor qualidade de vida para essas pessoas.